Entrevistas

A chama goiana e barroca de Bororó
 
  

João Máximo
 
Boróro acaba de trocar a nobreza coadjuvante do bom contrabaixista para se
tornar, no primeiro CD em seu nome, o astro do show. É assim mesmo que ele
deve ser visto: um astro a brilhar ao longo das 13 faixas de "Fogaréu",
lançamento do selo Caravelas. Brilhar não como solista de seu instrumento,
e sim como autor das canções, sozinho ou com os parceiros Carlos Ribeiro,
Sérgio Leão, Luiz Augusto, Lúcia Helena, Aldir Blanc e Yuri Popoff,
letristas cujos estilos a música de Bororó aproxima.
Da pesquisa a umarecriação musical
O CD começou a existir há dez anos, quando Bororó e Carlos Ribeiro foram
conhecer a Nação Kalunga, 204 mil hectares no nordeste goiano, habitados
por mais de oito mil negros remanescentes dos quilombos do século XVII.
— Kalunga é uma coisa maravilhosa e ao mesmo tempo triste — diz Bororó. —
Tem uma cultura única, rica, inclusive musical, e ao mesmo tempo é uma
comunidade isolada, longe das cidades, sem acesso a escolas e hospitais.
Lá não se usa dinheiro, só se consome o que se produz. Os habitantes de
Kalunga fabricam farinha, exploram a piscicultura, irrigam a terra por
gravidade, aproveitando que o Rio Paraná corta todo o sítio histórico do
lugar. Descobimos que, ali, o lado cultural está definitivamente ligado ao
social.
O isolamento é parte da história dos quilombos: quando fugiam dos senhores
brancos, os negros procuravam os lugares mais distantes, de acesso mais
difícil, para criarem ali o seu refúgio. Observa Bororó que, ao menos os
que se radicaram no interior de Goiás, têm um cultura nem branca nem
negra. O fotógrafo Rui Faquini, que foi registrar com sua câmara os
diversos aspectos de Kalunga, definiu-os culturalmente como "goianos
barrocos", com cerimônias, festas e música próprias.
Nascido há 53 anos em Goiânia, mas vivendo desde um ano em Belo Horizonte,
Bororó já acompanhou praticamente todo o primeiro escalão da música
brasileira. Baixista criativo e sensível, herdou o gosto pela música da
mãe acordeonista e do pai violonista. Começou na bateria. Depois,
passou-se para o violão e parou no contrabaixo.
— Por quê? Porque o baixo é a batida do coração. Para saber direito qual o
seu papel, tive que estudar todos os instrumentos de percussão. E pintura
também. Tudo que está na pintura está na música: contraponto, composição,
cor, a harmonia.
Um dia o violinista Sérgio Leão convidou-o a integrar a Sinfônica de
Goiânia. Bororó hesitou por não saber música. Mas Sérgio sugeriu que ele
fosse comprando o disco de cada peça que iriam executar — e decorasse suas
partes. O método, nada ortodoxo, funcionou. No Rio, a música popular. E
depois as viagens que lhe proporcionaram conhecer as comunidades indígenas
e correr a América Latina atraído pela cultura afro.
Foi assim que Bororó se juntou ao Instituto Palmares para, simultaneamente
às suas pesquisas musicais, trabalhar pelas minorias étnicas, sobretudo
negras. A idéia é que Kalunga seja cada vez mais auto-sustentável, que
seus habitantes sejam donos das próprias terras, que não dependam do que
Bororó chama de "triste esquema de doações".
"Fogaréu" é o primeiro resultado sonoro do elo que ele busca. Não é um
trabalho regionalista, mas de integração. O modo muito próprio com que
aquela comunidade se dedica às folias de Reis, às congadas, à catira, ao
canto das lavadeiras, ao próprio kalunga, foi assimilado por Bororó e
Carlos Ribeiro e transformado em composições originais. Temas como os de
"Tochas da fé", "Vão das almas", "Ladainha", "Elo", "São Luís dos Montes
Belos" e o que dá título ao CD hão de soar como coisa nova, inusitada, mas
boa, aos ouvidos habituados à música dos grandes centros urbanos. Do que
Bororó tem consciência. Tanto que, sem pensar no sucesso, já está
trabalhando num segundo CD no mesmo caminho e tem projeto de outro só de
temas afro, seus com Nei Lopes.
— Discordo dos antropólogos que, fascinados por Kalunga, propõem a
preservação da comunidade — observa. — Preservar o ser humano é isolá-lo.
Preservar a cultura, sim, é que é precioso.